sábado, 11 de abril de 2009

O Justo e a Justiça Política




Rui Barbosa
(Estes são trechos de um ensaio, publicado pela primeira vez em 1899, no qual o jurista, ensaísta, político e diplomata brasileiro Rui Barbosa (1849-1923) examina, à luz do Direito Hebraico e do Direito Romano, o processo de Jesus e o destaca como exemplo de abuso do poder em nome da justiça.)

Por seis julgamentos passou Cristo, três às mãos dos judeus, três às dos romanos, e em nenhum teve um juiz. Aos olhos dos seus julgadores, refulgiu sucessivamente a inocência divina, e nenhum ousou estender-lhe a proteção da toga. Grande era, entretanto, nas tradições hebraicas, a noção da divindade do papel da magistratura. Ensinavam elas que uma sentença contrária à verdade afastava do seio de Israel a presença do Senhor, mas que, sentenciando com inteireza, quando fosse apenas por uma hora, obrava o juiz como se criasse o universo, porquanto era na função de julgar que tinha a sua habitação entre os israelitas a majestade divina. Tampouco valem, porém, leis e livros sagrados, quando o homem lhes perde o sentimento.
Exatamente no processo do justo por excelência, não houve no código de Israel norma que escapasse à prevaricação dos seus magistrados. No julgamento instituído contra Jesus, desde a prisão, uma hora talvez antes da meia-noite, tudo quanto se fez até ao primeiro alvorecer, foi tumultuário, extrajudicial, a atentatório dos preceitos hebraicos. A terceira fase, a inquirição perante o sinedrim, foi o primeiro simulacro de formação judicial — o primeiro ato judicatório, que apresentou alguma aparência de legalidade, porque ao menos se praticou de dia.
O próprio Cristo não prescindiu de tais direitos. Sem autoridade judicial o interroga Anás, transgredindo as regras assim na competência, como na maneira de inquirir. E a resignação de Jesus ao martírio não se resigna a justificar-se fora da lei: "Tenho falado publicamente ao mundo. Sempre ensinei na sinagoga e no templo, a que afluem todos os judeus, e nunca disse nada às ocultas. Por que Me interrogas? Inquire dos que ouviam o que lhes falei: esses sabem o que Eu lhes houver dito". Era apelo às instituições hebraicas, que não admitiam tribunais singulares, nem testemunhas singulares. O acusado tinha jus ao julgamento coletivo, e sem pluralidade nos depoimentos criminadores não poderia haver condenação. O apostolado de Jesus era ao povo. Se a sua prédica incorria em crime, deviam pulular os testemunhos diretos. Esse era o terreno jurídico. Mas, porque o filho de Deus chamou a Ele os seus juízes, logo O esbofetearam. Era insolência responder assim ao pontífice. "Sic respondes pontifici?" "Sim", revidou Cristo, firmando-Se no ponto de vista legal: "Se mal falei, traze o testemunho do mal; se bem, por que Me bates?"
Anás, desorientado, remete o preso a Caifás. Este era o sumo sacerdote do ano. Mas, este ainda assim, não tinha a jurisdição, que era privativa do conselho supremo, ao qual Caifás já muito antes revelará sua perversidade política aconselhando a morte a Jesus, para "salvar a nação". Cabia-lhe agora levar a efeito a sua própria malignidade, cujo resultado foi a perdição do povo, que ele figurava salvar, e a salvação do mundo, em que este jamais pensou.
A ilegalidade do julgamento noturno, que o direito judaico não admitia nem nos litígios civis, agrava-se então com o escándalo das testemunhas falsas, aliciadas pelo próprio juiz, que, na jurisprudência daquele povo, era especialmente instituído como o primeiro protetor do réu. Mas, por mais falsos testemunhos que promovessem, Lhe não acharam a culpa, que buscavam. Jesus porém Se calava. Vão perder os juízes prevaricadores a segunda partida, quando a "astúcia" do sumo sacerdote lhes sugere o meio de abrir os lábios divinos do acusado. Adjura-o Caifás em nome de Deus vivo, a cuja invocação o filho não podia resistir. E diante da verdade, provocada, intimada, obrigada a se confessar, aquele, que a não renegara, vê-se declarar culpado de crime capital: "Blasfemou! Que necessidade temos de testemunhas? Ouvistes a blasfêmia." Ao que clamaram os circunstantes: "é réu de morte".
Repontava a manhã, quando a sua primeira claridade se congrega o sinedrim. Deste modo se dava a primeira satisfação às garantias judiciais. Com o raiar do dia se observava a condição da publicidade. Era essa a ocasião jurídica. Esses eram os juízes legais. Mas juízes, que tinham comprado testemunhas contra o réu, não podiam representar senão uma infame hipocrisia da justiça. Estavam mancomunados, para condenar, deixando ao mundo o exemplo, tantas vezes depois imitado até hoje, desses tribunais, que se conchavam de véspera nas trevas, para simular mais tarde, na assentada pública, a figura oficial do julgamento.
Saía Cristo, pois, naturalmente condenado pela terceira vez. Mas o sinedrim não tinha o jus sanguinis. Não podia pronunciar a pena de morte. Era uma espécie de júri, cujo veredicto, porém, antes opinião jurídica do que julgado, não obrigava os juízes romanos. Pilatos estava, portanto, de mãos livres, para condenar, ou absolver. "Que acusação trazeis contra este homem?" "Se não fosse um malfeitor, não to teríamos trazido", foi a insolente resposta dos algozes togados. Pilatos, não querendo ser executor num processo, de que não conhecera, pretende evitar a dificuldade, entregando-lhes a vítima: "Tomai-o, e julgai-o segundo a vossa lei." Mas, replicam os judeus, "bem sabes que nos não é lícito dar a morte a ninguém". O fim é a morte, e sem a morte não se contenta a depravada justiça dos perseguidores.
Aqui já o libelo se trocou. Não é mais de blasfêmia contra a lei sagrada que se trata, senão de atentado contra a lei política. Jesus já não é o impostor que Se inculca filho de Deus: é o conspirador, que Se coroa rei da Judéia. A resposta de Cristo frustra ainda uma vez, porém, a manha dos caluniadores. Seu reino não era deste mundo. Não ameaçava, pois, a segurança das instituições nacionais, nem a estabilidade da conquista romana. "Ao mundo vim", diz Ele, "para dar testemunho da verdade. Todo aquele que for da verdade, há de escutar a Minha voz". "Que é a verdade"? pergunta definindo-se o cinismo de Pilatos. Não cria na verdade; mas a inocência de Cristo penetrava irresistivelmente até o fundo sinistro de sua alma. "Não acho delito a este homem", disse o procurador romano, estorvando outra vez a maquinação dos judeus.
Devia estar salvo o inocente. Não estava. A opinião pública faz questão da sua vítima. Jesus tinha agitado o povo, não ali só, no território de Pilatos, mas desde a Galiléia. Ora acontecia achar-se presente em Jerusalém o tetrarca da Galiléia, Herodes Antipas, com quem estava de relações cortadas o governador da Judéia. Excelente ocasião, para Pilatos, de lhe reaver a amizade, pondo-se, ao mesmo tempo, de boa avença com a multidão inflamada pelos príncipes dos sacerdotes. Pilatos envia o réu a Herodes, lisonjeando-lhe com essa homenagem, a vaidade. Desde aquele dia um e outro se fizeram amigos, de inimigos que eram. Assim se reconciliam os tiranos sobre os despojos da justiça. Mas Herodes também não encontra, por onde condenar a Jesus, e o mártir volta sem sentença de Herodes a Pilatos.
Este último reitera ao povo o testemunho da intemerata pureza do justo. Era a terceira vez que a magistratura romana a proclamava.
Da boca de Pilatos irrompe a quarta defesa de Jesus: "Que mal fez ele?" Cresce o conflito, acastelam-se as ondas populares. Então o procónsul lhes pergunta ainda: "Crucificareis o vosso rei?" A resposta da multidão em grita foi o raio que desarmou as evasivas de Pilatos. "Não conhecemos outro rei, senão César". A esta palavra o espectro de Tibério se ergueu no fundo da alma do governador da província romana. O monstro de Cáprea, traído, consumido pela febre, crivado de úlceras, gafado da lepra, entretinha em atrocidades os seus últimos dias. Traí-lo era perder-se. Incorrer perante ele na simples suspeita de infidelidade era morrer. O escravo de César, apavorado, cedeu, lavando as mãos em presença do povo: "Sou inocente do sangue deste justo." E entregou-o aos crucificadores. Eis como procede a justiça, que se não compromete.
De Anás a Herodes o julgamento de Cristo é o espelho de todas as deserções da justiça, corrompida pelas facções, pelos demagogos e pelos governos. A sua fraqueza, a sua inocência, a sua perversão moral crucificaram o Salvador, e continuam a crucificá-lO, ainda hoje, nos impérios e nas repúblicas, de cada vez que um tribunal sofisma, tergiversa, recua, abdica. Foi como agitador do povo e subversor das instituições que se imolou Jesus. E, de cada vez que há precisão de sacrificar um amigo do direito, um advogado da verdade, um protetor dos indefesos, um apóstolo de idéias generosas, um confessor da lei, um educador do povo, é essa, a ordem pública, o pretexto, que renasce, para exculpar as transações dos juízes tíbios com os interesses do poder. Todos esses acreditam, como Póncio Pilatos, salvar-se lavando as mãos do sangue que vão derramar, do atentado que vão cometer. Medo, venalidade, paixão partidária, respeito pessoal, subserviência, espírito conservador, interpretação restritiva, razão de estado, interesse supremo — como quer que te chames — prevaricação judiciária, não escaparás ao ferrete!
"Ao mundo vim para dar testemunho da verdade. Todo aquele que for da verdade, há de escutar a Minha voz.
Undefeated!

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